Um teto novo
Tenho tentado organizar as coisas que fiz nesses quatro anos no ateliê com crianças e adolescentes, e me percebo a cada dia mais em um turbilhão, numa intensidade emocionada. Trabalhar num percurso de acompanhamento de processos por quatro anos, recebendo crianças novas de vez em quando, mas vivendo o crescimento de tantas crianças que estão por lá desde o (meu) primeiro ano, é muito bonito, intenso e transformador. Eu me transformo também na transformação deles. Trabalhar com arte aliada à educação é ter o nosso corpo e sentidos ampliados num grau inimaginável. Vivo crescendo. E agora, nesse final de mais uma das temporadas intensamente vividas por lá, estou cheia de questões e incoerências e, ao mesmo tempo, há uma certeza, uma força e um fluxo contínuo e fluido a cada dia que encontro as meninas e os meninos no ateliê. Me vejo grande, mais sábia e explosiva. Me vejo neles, vejo eles em mim e vejo o que criamos juntos com muita clareza. Percebo que, em grande parte, tudo aquilo que articulamos coletivamente a cada dia funciona, nesse vínculo que nem sei mensurar aqui o teor da profundidade que tem.
Pesquiso nos registros que já escrevi as coisas que fizemos por lá e, o que mais noto, é que escrevo muito a palavra ateliê. Sinto que, nessa construção do meu trabalho, falei do ateliê como o lugar seguro, que deu contorno. Como lugar que acolheu as crianças para que elas criassem. O ateliê como o lugar que eu sempre desejei ter tido quando criança: uma moradia das possibilidades infinitas. Um templo. Construímos juntos, eu, meninas e meninos, aliados a uma equipe bonita e talentosa de gente que botou fé no meu jeito de trabalhar, sentir e fazer as coisas, um espaço que moldou não só o meu corpo, mas a minha natureza. Me deu força e me trouxe para o mundo de volta depois de eu não achar saída em algumas outras tentativas de articulação coletiva em torno de projetos e ideias de construção de grupo, que é o que percebo que gosto muito de fazer. E eis que eu, finalmente, construía algo do qual eu compreendia a vazão que dava. E vazou, contaminou, preencheu. Conheci muita gente por causa disso. Tive por perto muita gente querendo me ouvir falar. Tive e tenho por perto muita gente querendo estar junto e conhecer o que eu tento articular por ali. Uma alegria. Ganhei nome e nomeei as minhas coisas. Ofício que me representava. Muito trabalho e realização diária, mesmo indo para lá apenas em alguns dias da semana. Nesse tempo, também recebi muitas declarações de amor semanalmente de diferentes crianças, e fiz declarações de amor semanalmente, também. Nunca o amor esteve tão compartilhado e declarado, e por tanta gente, como nesses quatro anos da minha vida. E nunca gestar ideias e lidar com possibilidades, brincar, falar de criação, construção, feitura, labuta, manuseio, imaginação, desejo, hipóteses, questões, esteve tão presente e tão compartilhado com tanta gente. Há quatro anos, uma sensação de amplitude que parece só aumentar. Porque eu cresci de tamanho. Simples. E acho que é isso o que um trabalho de articulação coletiva em torno de alguma vontade faz com a gente. Acho que é isso um pouco o que a arte faz arejar e isso o que a educação ajuda a incorporar nas pessoas. Tempo para crescer.
Daqui a alguns dias, vamos parar o ateliê e ficaremos sem os nossos encontros semanais por três meses, eu, as crianças e as pessoas lindas que estão junto conosco nessa jornada. E antes disso, a necessidade de parir uma exposição contando tanta complexidade e profundidade vivida por nós no ateliê nesse semestre de transformações do nosso espaço, se fez presente. Fui correr para os mais de mil registros fotográficos, fui tentar entender o que se passava, e notei que algo intenso por aqui (dentro) acontece.
Vamos parar os nossos encontros por três meses porque o teto do ateliê vai sair, e vão colocar um teto novo. O teto, a cabeça da casa. A minha sensação é de que, naquele templo onde as possibilidades habitam, naquele lugar onde tanta coisa mágica aconteceu, onde tanta maravilha cheia de significados profundos se fez possível e tanto tesouro foi desenterrado, algo sério vai acontecer. Um implante de cabeça. Tenho sonhado com casas, janelas e florestas. Me pego desenhado chapéus protegendo cabeças. Corpo-casa, casa-corpo. Caixa de Pandora se abrindo. O nosso teto vai sair para que chegue um novo e os filhos de santo raspam a cabeça também para que o santo chegue.
E nessa despedida das últimas semanas sob o teto antigo, há três encontros (como já relatei outro dia), as meninas e os meninos de uma das turmas no ateliê tem brincado que são bebês. Meninas e meninos de sete, oito, nove anos, passam mais de hora fazendo arte como bebês. Naquela brincadeira, pari dez deles. Um deles, inclusive, nasceu mais de uma vez. Nascimento e renascimento. E é aí que, como sempre, eles me ensinam tanto e sabem tanto das coisas: é preciso que eu também nasça de novo para receber esse novo teto.
Há quatro anos, trabalho num ateliê. Há quatro anos, trabalho num ateliê com crianças e adolescentes articulando ideias e vontades e tenho feito a minha cabeça. Pois então, já é tempo: que as divindades cheguem por aqui.