Juliana Cordaro
2 min readMay 25, 2017

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Ensaio de voo

coruja, por William

Um menino que pula. Pula como ninguém. Dá saltos, voa, desafia a gravidade. Tem um olhar curioso, meio de lado. Soslaio. Um sorriso que diz mil coisas que não existem. Mil termos que não tem designação em palavra alguma de nenhuma língua falada com a boca.

Um menino que é amor. E eu sei disso, porque o vi com as pessoas ao seu redor. Vi também alegria em seu rosto, vi vontade que nasce da barriga e explode por todo um corpo que não vê limites e tem toda uma precisão ao circular pelos espaços. Um menino que se movimenta pelo mundo com um corpo presente de criança e artista. Doçura e força. Um menino. Não tenho visto muito por aí coisa igual. Me impressiona sua movimentação pelo mundo. Sua destreza, coreografia. Um menino que tem uma mãe que também é amor, como ele. Uma força, os dois juntos. São bonitos. Acompanho. Uma família que me emocionou tão profundamente que não soube explicar.

O menino me movimenta. Um espelho que me atravessa sem cortar. Um portal. Há uma beleza que não tem explicação. Que não cabe. Vejo além, nesse menino. Vejo muito, vejo gigante, naquelas pernas e braços rápidos que transformam o mundo em risco maravilhoso. O menino arrisca. Carrega a urgência do risco consigo. E sorri. Criança que inventa espaços entre uma cadeira e uma escadaria. Salta. Voa. E meus olhos assistem maravilhados a um espetáculo toda vez que o vejo.

O menino transforma uma possível sina em caminho inventado. Me diz, sem saber, que há como criar o próprio passo. Que há como seguir a mesma estrada em outro ritmo. Há como saltar em vez de caminhar. Há como inventar um jeito só nosso para seguir o caminho. Há como pegar impulso entre uma mesa e um corrimão para chegar até onde os outros chegam em passos dados sem presença, ordenados e sem sentido.

Faz pouco tempo, o menino teve que ir. O menino que me deu uma dança-risco sob meus olhos uma vez por semana nas minhas manhãs. Por dois anos e meio, fui chamada para espetáculos que me faziam todo o sentido. Risco. O menino é risco. Me lembrando a vida toda. A vida, minha. Me lembrando o que eu pensava que vim fazer aqui quando me dei conta de que eu existia.

Voa, menino. O menino também é meu porque eu o vi. E ele é do mundo porque eu também sou.

Deixar o menino ir, tem sido meu primeiro ensaio de vôo, relembrando o que eu queria ser, quando pequena, me vendo em espelhos gigantes.

Como disse Guimarães Rosa, “amor é a gente querendo achar o que é da gente”.

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Juliana Cordaro

Artista entre campos. Propõe encontros de arte para fazer caber mais das pessoas no mundo e mais do mundo nas pessoas. http://linktr.ee/juliana.cordaro